Um pecador aos pés da cruz

 

Domingo, 24 de julho – celebrando o dia da Mulher Negra e latinoamericana, o projeto Erguendo a Voz, do Coletivo de Escritores Negros, do qual muito me orgulha fazer parte, foi recebido pelo Coletivo Autônomo Morro da Cruz para uma roda de escuta ativa e produção de cartas com as moradoras. A ideia era proporcionar um espaço de acolhimento e afeto, através da troca de experiências a fim de criar um canal de comunicação, talvez, permanente, para que essas mulheres possam se expressar contando as suas próprias histórias. Mas uma coisa que já aprendi é que acolher é uma via de duas mãos, ou muitas, e que, normalmente, quem acolhe acaba saindo mais acolhido e cheio de carinho.

Pra começar fomos de Van. Daí tu sabes, né, a gente entra numa Van com os amigos e imediatamente volta pra quinta série. Um quer falar mais bobagem que o outro, gente mandando ir direto pra Torres, tem musiquinha pro motorista, mexe com o pessoal na rua, assovia pra um conhecido na parada… e segue. No pé do morro já dá pra ter uma ideia do marzão de gente que mora ali, histórias reais a se perder de vista, no caso, de ouvido, cada beco um universo, em toda a esquina tem um vizinho que conhece todo mundo, em cada janelinha brilha a noite, mesmo que muitos não queiram, contra tudo e contra todos, os sonhos de um futuro de irmãozinhos nossos. E isso me comove.

“qual é o nível de escolaridade que se deseja para um lugar com mais de 60mil habitantes onde só se oferecem escolas de Ensino Fundamental?”

Imagina a riqueza que emerge em uma escuta individual, direcionada, atenta e amorosa com essas mulheres. Algumas ajudaram a estabelecer a comunidade. Muitas vieram bem pequenas e se criaram ali. E outras ainda, como a Sofia, no ventre de uma jovem mãezinha, que antes de chegarem ao mundo já se alimentam dos vínculos e recebem o apoio de uma rede com tramas tão resistentes e ao mesmo tempo tão delicadas que são invisíveis aos olhos do poder púbico. Por que qual é o nível de escolaridade que se deseja para um lugar com mais de 60mil habitantes onde só se oferecem escolas de Ensino Fundamental? Isso, sim, fica bem nítido. Tudo por aqui é iniciativa da coletividade. Pois se esperar alguma coisa do Estado a Sofia fica velha e não mudou nada.

Como o projeto Erguendo a Voz é feito por e para mulheres, para que ficassem mais à vontade, minha função foi cuidar das crianças, na verdade, minha e da Marcela, que é marida de uma das gurias do coletivo. A proposta foi um curso prático de física e dobraduras em celulose com propulsão eólica, ou seja, campeonato de aviões de papel. E foi só falar avião de papel que já estávamos em um total de oito crianças: a Larissa (que valia por três); sua irmã, Luiza (que valia por duas); a marida, Marcela (que se revelou uma criança muito ativa e divertida, apesar de um pouco teimosa); o motorista (mais criança do que as crianças); e eu (que, parafraseando meu Maria, não sei o dia em que a minha infância acabou. Não sei, com certeza, se acabou. Porque não sei se ainda sou um menino ou se sempre fui velho).

Só sei que passamos o dia sem mexer em celular, viajando em aeronaves com vida própria, até que o céu desbotasse em tons de ferrugem e lilás. Nos despedimos da tripulação com aquele sorrisinho de canto, os lábios cerrados de quem não sabe se vai se ver novamente e embarcamos na Van pra subirmos até a cruz que batiza o morro. Bom, na Van tu já sabes, é bolachinha voando, choro de emoção e alegria, surge um samba na calçada: “me deixa aqui, motora!“. “Olha o nego Mauro ali na esquina!”… e segue. Tanta gente boa nesse mundão, tudo é tão efêmero e frágil, os sonhos vão se acendendo nas janelas, salpicam de estrelas a paisagem, sopra um ventinho frio e esperançoso. E eu que nem sou de reza, convicto pecador, desdobrei a oração mais sentida que tinha e lacei na carona de um aviãozinho de papel, com toda a fé, pra minha Poa imensa, do alto do Morro da Cruz.

 

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6 comentários em “Um pecador aos pés da cruz”

  1. Gilmar de Azevedo

    Caro Tiago, muito sensacional seu texto, e sua experiência. Isso mostra que és diferente, especial, uma pessoa com a qual desejamos amizade. Avante, amigo e que venham outras sessões e cidadania e humanidade, e texto tão bem escrito como este. Abraço!

    1. Tiago Maria

      Experiência incrível, mesmo. Muito significativa. Agradeço mais uma vez as palavras de incentivo. É uma honra a sua leitura. Ainda parafraseando o meu Maria, em uma declaração de bens citaria, entre as primeiras coisas: Conto com a amaizade do professor Gilmar de Azevedo.

      Abração, mestre!

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