Cachorros deviam durar, sei lá, uns cento e cinquenta anos. Igual tartaruga. Sério, deus ratiou nisso. Imagina deixá-los como herança a um netinho ou um sobrinho querido. Quanta riqueza e lealdade nesse legado. Seriam os melhores amigos do homem, do filho e do neto do homem.
Desde o inverno em que eles encontraram esse animal aqui, abandonado em uma caixa de papelão, sarnento, lambendo as feridas numa sarjeta do Bom Fim, vivo (de favor) com um casal de cachorros. Um é o Tinho. Puralata de pai e mãe que não vale um osso enterrado. Nunca ouvi sua voz. Acredita que existo exclusivamente para servi-lo. A outra é a Phyna. Pedigree, sobrenome e tudo. Pelagem melhor que o meu cabelo. Só come importado e bebe água com gás.
O Tinho, apesar de ser mais jovem, tem uma aparência bem mais envelhecida. Olheiras. Alguns fios brancos no bigode. Dorme a maior parte do dia enrolado num trapo estendido ao lado da velha casinha. Levanta só pra uma farejada em alguma coisa misturada com arroz. Some vez que outra. Volta manquitolando ao amanhecer. Inclinado. Rabo entre as pernas e um falso sorriso com o focinho torto. Passa dias na esbórnia canina. Cheira a álcool e perfume das cadelinhas de madame. Juro que uma vez, de relance, antes de entrar no portão, o vi cuspindo uma bagana de cigarro.
Phyninha desperta sempre no mesmo horário. Frutas e cereais para filhotes no desjejum. Usa meias pra não irritar as patas no piso frio. Assiste pontualmente à novela das nove sentada na poltrona do papai. Durante o jornal, balança o rabo e fica inquieta com o noticiário político. Dorme na cama de casal. Lençol térmico e ar condicionado. Ouve Ênia até pegar no sono. Vai uma vez por dia ao pet shop. Coleira anti pulgas de cristal swarovski. Não busca bolinhas, gravetos ou qualquer outro objeto arremessado. Jamais faz xixi em público. Late em seis idiomas.
Fico pensando em quando me faltarem esses melhores amigos. Faltarei um pouco também. Muito cachorro é o espelho do dono. Minha relação, porém, reflete o inverso. Vejo casais desses com anos de convivência que se tornam quase siameses. Nos trejeitos. A postura. O modo de falar. Assemelham-se fisicamente. Possuem afinidades nos gostos e dissabores. Vejo isso também no relacionamento com meus irmãozinhos caninos. Não sei exatamente quem roubou os cacoetes de quem. Por vezes parece que estão me satirizando, esses safados, filhos de uma cachorra. Em outros momentos é esse ser humano de estimação a replicar suas rotinas e neuroses.
Quando a carrocinha divina vier levá-los ao céu dos cachorranjos – que isso se arraste a eternidade de um uivo –, saudosista, quem sabe acorde cedo e prepare o bom café da manhã. Meias de lã, no inverno que congela o piso. Não posso perder a novela nem o jornal aninhado na cadeira que será finalmente do papai. Ar condicionado e lençol térmico até pegar no sono. Dispensarei a Ênia. Agora certeza, certeza, mesmo, é de chegar, vez que outra, meio inclinado. Manquitolando. Rabo entre as pernas. Aquele falso sorrisinho torto, cheirando a álcool e perfumes de madames. Vou cuspir a bagana antes de entrar no portão, me enrolar num trapo qualquer ao lado da velha casinha e farejar qualquer coisa misturada com arroz. Vai ser uma saudade do cão.
Genial! O blog do ano!
agora sim, chovi!
Obrigado, amiga.