Olhar pluvioso

“Nós vamos prosseguir, companheiro, medo não há / No rumo certo da estrada unidos vamos crescer e andar”.

Não é possível falar n’outra coisa. Não há tema que se imponha com maior urgência. Nenhuma demanda, no momento, está acima da tragédia que inunda o Rio Grande do Sul. “Alexa, pode me fazer esquecer?”, “infelizmente, não posso”. Do alto dos nossos privilégios, por aqui, estamos seguros e protegidos. Bem, ninguém está. Um horror. Muito, muito triste. Uma multidão que já tinha bem pouco e agora perdeu tudo. Parentes, amigos, todos do bairro Sarandi estão desesperados, desinformação total, uma tragédia, em muitos lugares está beirando a desordem social. E nem vou falar da contaminação com a exposição às águas, doenças, infestação de mosquitos, cavalos e vacas se equilibrando em telhados, jacarés em via pública, a lama misturada ao esgoto que cobre a completude, o cheiro podre e de morte. Quando a água baixar, o que vamos assistir não terá palavras.

“Existe uma fauna solta, atordoada. Também pessoas, com sacolas, mochilas e colchões nas costas, caminhando pelas ruas com os pés descalços, memórias e almas encharcadas – olhar pluvioso. As coisinhas ralas que conseguiram salvar, pertences de uma vida toda de escassez, enroladas em uma trouxa, emboladas num carrinho de mão”.

“Nós vamos repartir, companheiro, o campo e o mar / O pão da vida, meu braço, meu peito feito pra amar”.

Somam-se aos milhares as crianças, idosos, jovens, mulheres, homens e bichos com sede, fome e medo. Contam apenas com solidários desconhecidos. Precisam de banho, abraço e acolhimento. A cidadania, que por lei deveria ser garantida pelo Estado, naufragou. Total desrespeito. Uma humilhação atrás da outra. Os corpos exaustos, as feridas, a miséria e a dignidade expostas, em sua maioria negros e negras, todos pobres. Cenas fortes, cenas lindas e incongruências. A visão é pós-apocalíptica. Comove a beleza dos gestos espontâneos de socorro, assistência e amparo. O povo doando e se doando vinte e quatro horas. Também tem gente, uma minoria, (será que é gente?) saqueando casas desocupadas, espalhando Fake News, golpe da marmita, desabastecimento de supermercados, aliciamento de crianças em abrigos, os blogueirinhos da tragédia, capitalizando com a desgraça alheia. Um asco. Sujeitos escrotos. Lamentável!

Nós vamos semear, companheiro, no coração / Manhãs e frutos e sonhos, pr’um dia acabar com esta escuridão”.

Políticos pedindo para não politizarem a situação. Alôou! Toda a decisão é política. Como a do governador Dudu Milk (Eduardo Leite), que modificou mais de 480 pontos do Código Ambiental do RS, o bolsonarismo escancarado do prefeito Sebastião Melonaro, que em 2023 não investiu “um pila” na prevenção de enchentes e que chegou ao poder com apoio milionário da Melnick, construtora que doou 50 colchões, repito, 50 colchões para milhares de desabrigados, será que dormem bem? Ou a covardia do senador Mourão, desaparecido durante a enchente e do secretário do Desenvolvimento Social do município, Léo Voight, que deixou o cargo depois de a imprensa descobrir que ele viajou a Florianópolis, para de lá tomar um avião para França, em plena catástrofe que assola o seu pago. Todas decisões políticas. Nos resta ajudar com o que for possível e torcer para que essa tristeza tenha fim. Dias a serem esquecidos, que para sempre serão lembrados.

“Nós vamos preparar, companheiro, sem ilusão / Um novo tempo em que a paz e a fartura brotem das mãos”.

 

*texto publicado na revista RUBEM.

Olhar pluvioso [Tiago Maria]

09/05/2024

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