Carla Fatal

Trabalhava no departamento financeiro de uma renomada banca. Não a do bicho. Essa era outra, advocatícia. Um prédio imponente, redondo e todo espelhado bem próximo do museu Iberê Camargo, às margens do Guaíba. A decoração de dar inveja em qualquer Caras.  Uma escada circular ao estilo dos castelos medievais, toda em mármore, atravessava o espaço alçando aos andares superiores. No teto, pendia um lustre – multireluzente – do tamanho de um carro popular. O terraço era onde ficava a cozinha e o refeitório. Alguns finais de tarde, o céu pelado de nuvens, desbotava em roxos avermelhados, cobrindo trezentos e sessenta graus de Porto Alegre numa fotografia indecente.

Peço vênia (essa aprendi lá), se me permitem, mas gostaria de merecer um aparte. É que, assim, nas minhas observações, vejo as pessoas das leis naturalmente vaidosas, apresentam-se sempre muito bem-vestidas, seriíssimas por excelência, seus cartões em tons sóbrios, letras prateadas e alto relevo. Pois, de fato, não era diferente. O dress code (outra), fazia jus ao ambiente. Traje completo e gravata para os homens. Mulheres de tailleur em cores neutras, saias um pouco acima dos joelhos, blazers e scarpins. Não sou da área do direito, mas tentava acompanhar as tendências com meu único terno, guerreiro, puído e um número maior.

Carla Fatal. Dizia em letras garrafais nos envelopes que fiz questão de deixar sob minha custódia (mais uma). “A Dra. Carla vai pegar aqui”. A nova sócia no escritório. Não a conhecia pessoalmente. Imaginava coisas sobre a Dra. Carla Fatal, com todo o respeito, é claro, mas esse sobrenome… sei lá, não conseguia desassociá-la do clichê da femme fatale. Aquele arquétipo feminino usado muito na literatura, no cinema do gênero policial e no drama europeu, ambos de qualidade duvidosa. A mulher fatal, que seduz e engana os homens para obter algo que deles não teria de forma espontânea. No meu caso, poderiam ser os envelopes. Guardava-os em sigilo na gaveta esperando o dia de ser enganado.

Esse desencontro durou semanas. “A Dra. Carla passou aqui, tens alguma coisa para ela?”. “Opa, deixa que eu entrego em mãos”. Imaginava suas mãos, o formato e a cor das unhas, como seriam os cabelos, sua voz, os sapatos, o perfume, a Dra. Fatal usaria óculos, alguma joia pendendo no colo? Foram dias de aflição e expectativa. Mudei meu horário de almoço, chegava antes do turno e saía depois. Nada. O suspense só aumentava junto com os envelopes que já abarrotavam a gaveta. Até que um dia, um fatídico dia, num desses finais de tarde obscenos, no terraço, nos encontramos.

Um colega fez as honras. Tinha a voz muito bem projetada. A fala precisa. Uma mulher grave. Bem diferente do meu imaginário onde aparecia fumando cigarrilla e usava penhoar. “Olá, muito prazer, você que é do financeiro?”. “Sim. E você deve ser a Dra. Carla Fatal, certo?”. De imediato, corrigiu: “Magalhães, Dra. Carla Magalhães”. Constrangido, ainda tentei explicar o inexplicável. “É que nos envelopes dizia Carla Fatal, então pensei que…”. Aprendi lá também que aquilo era indicação de urgência, que prazo fatal é um termo utilizado para designar a véspera do prazo legal, uma data limite. Esvaziei as gavetas e passei no RH. Foi fatal.

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