Boleiros de Rafel

Ensaio-de-Orquestra

Lista dos relacionados para a partida:

Flauta, Clarinete e Fagote. Caixa Clara (caixinha), Flautim e Oboé. Sax tenor, Sax Soprano e Sopranino. Trompa e Celesta. Trombone, Clarone, Violino e Viola. Tam-Tam, Bumbo e Pratos.

O time ensaiou  com Tam-Tam no gol, Flautim na lateral direita e Fagote na esquerda. A zaga tinha Trombone e Bumbo. Trompa como volante pela direita e Celesta cobrindo o lado esquerdo. Camisa dez, polêmico e craque do time, Sax Tenor. Na meia direita, Violino. Formando a dupla de ataque Viola e Pratos. No banco de reservas, todos atentos a um mínimo aceno do maestro. A princípio, estava assim escalada a orquestra do senhor Maurício Rafel. Mais conhecido como: El Maestro.

Ainda enrolavam as ataduras quando Maestro entrou no vestiário. Discreto igual boa arbitragem. Boininha de feltro. Óculos bifocais presos na cordinha por trás do pescoço. Aparelho auricular no ouvido esquerdo. Movia-se feito um gato caçando. Artrose. Entrou e até o chuveiro engoliu o pingo teimoso. Uma risadinha foi se esvaziando pela fresta da porta. O Caixa deu partida numa marchinha na maca de massagem, bem suave, quase inaudível, um ritmo muito marcado e regular, só com a ponta dos dedos, a mão nem se mexia. Ouçam. Não vai parar um até que se encerrem os acordes.

Estacionou frente a grande vitrine onde descansam as reluzentes conquistas das batalhas de outrora. Gigantes dourados. Seguros. Escudados pela enorme parede de vidro. Com os movimentos em modo tai chi chuan, trouxe, a cabresto, uma cadeira até o centro do vestiário. Sentou-se. Em câmera lenta. E o Caixinha trotando sua marcha. Hipnótica. Obsessiva. Acompanhando o compasso…

Sopra uma única frase musical em dó maior. Contínua. Quase inaudível. Porém doce. Em um crescendo progressivo. Melodiosa. Uma curta modulação em mi maior próxima ao final, mas retorna ao dó maior. Lá do fundo nem se escutava. Dizia movendo apenas o lábio inferior: “Hoje vamos iniciar com o Flauta.”. Assombro. Alguém apita: “Mas, professor, ele é de sopro.”. “Mas pertence ao grupo das madeiras. E em seguida vai entrar o Flautim que é bem mais agudo, pelos flancos.” Manteve o Maestro, com a voz mais empostada. Achegam-se os do fundão. “Clarinete, aqui, em Si bemol” ponteia na prancheta o local exato. Rabisca no quadro. “Percebam a Harpa em acompanhamento ao fundo”. Movimenta algumas peças. “Quero um contra fagote bem aqui, uma oitava mais grave, só fazendo sombra, sem muito destaque.”. Levanta-se num choque o Maestro. Saca a boininha. Sobe também o tom do Caixinha que já está de pé marcando passo. “Sabemos que o time deles vem com um clarinete em lá grande, que se dá melhor em tonalidades com sustenidos, não sabemos?”. “SABEMOS!”. Treme a vitrine. “Não quero ver nenhum desses sustenidos por aqui, ENTENDIDO?”. “SIIMM”. “Queremos tonalidades em bemóis, pra facilitar pro nosso Clarinete. BEMÓIS, é isso que queremos não é, PORRA!”. “É ISSOO!”. O maestro agora gesticula no modo caratê. Distraído com as folhas secas que bailavam na janela, o Oboé d´amore questiona se é pra ele sair em linha já com um lá maior ou carregar naquele timbre mais anasalado tradicional. O Maestro arrancou os óculos e atirou-os ao chão. “Tu pareces é um corne inglês, desafinado num fá maior que essa tua burrice!”.

Braceja o Maestro. Marcato. Staccato. Legato. Articulado. Descompassado. De raiva e pra alcançar o volume do Caixinha que, agora, percute de pé sobre a maca. Usa um par de caneleiras como baquetas. Um cone vira repique nas mãos do afinador-massagista. Arredio, trota de um lado para o outro. Seus gestos ficam mais amplos. “Trompete com surdina e Flauta, quero mais comprometimento de vocês. Tá faltando vibração aí, gente, não basta soprar, vocês são metais ou não são, PORRA? Tem que vibrar os lábios, CARALEO, é pra morder se for preciso.”… Pelo lado de fora, um chutáço de três dedos acerta a porta de latão do vestiário. Adentra o Sax Tenor. Óculos escuros e terno. Sem camisa. A gravata enrolada na testa. Cigarro na boquilla. “Perdón, Maestro, me acosté demasiado tarde”. Uma bolha de som acompanha com intensidade e volume progressivos o batuque do Caixinha. Não arrisca tirar o S10 do time. Carece daquela mistura da potência dos metais com a agilidade das madeiras. Traço que mais lhe encanta no Sax Tenor. Não. Não pode deixá-lo na regra. Seria punir toda a equipe. Colocar em risco a grande final. Não faria isso. Movia-se então no modo ninja samurai o Maestro. Um salto sobre a cadeira. Chuta o saco das bolas. Atira um copo d´agua no rosto do Oboé d´amore que desenhava arabescos durante a preleção. “Quero os flautins tocando no agudo, em sol maior e mi maior, um do lado do outro, alterando os harmônicos da trompa e modificando, assim, o seu timbre.”. “Pelas beiradas”, berrava o Maestro, “PELAS BEIRADAS”. Move a prancheta em upbeat e prepara o downbeat. “Celesta, você vai carregar o falso piano”. “Toque em dó maior uma e duas oitavas acima da Trompa.”. Enxuga o suor com a gravata que arrancou da cabeça do Tenor e pergunta: “Sabemos ter notas muito graves para serem atingidas por instrumentos tão agudos, NÃO SABEMOS?”. “SIM, SABEMOS!”. Em coro. “Quero os meias glissando essa nota de pé em pé, ouviram bem?”. “Quero notas e silêncios bem divididos. NO COMPASSO, NO COMPASSO”. Euforia! Molha a cabeça no chuveiro gelado que tamborila no ralo. Enrola bem a camisa do time na mão direita. Engole água e pisa no copinho de plástico. “Quero que prestem atenção agora”. Prossegue. Majestático. “Os primeiros violinos, venham mais aqui na minha frente”. Saltaram sobre os demais usando suas varas. “Os segundos violinos!”. “Aqui, Maestro”. Responderam em uníssono. “Ouçam bem, quando a melodia se encaminhar para as notas mais graves, lá pelos quarenta do segundo tempo, quero uma infiltrada triunfal bem por aqui, junto com as flautas, flautins, oboés e clarinetes. Vai ser nas costas do zagueiro. FULMINANTE! FULMINANTE!”. O Maestro alucina. Convulsiona. Gritos! Assovios! “Nessa hora, bem nessa horinha, vamos trocar o Sax Soprano de posição com o Tenor. O Flautim vai sair pra entrar o Clarone. Sai Trompete entra Trompa. Troca o Segundo Violino por Viola, igualzinho no ensaio, combinado?”. “Quem tá comigo?”. “ÉÉ”. “EU PERGUNTEI QUEM TÁ COMIGO AQUI?”. “ÉÉÉÉÉ”. Gritos! Assovios! Safanões! O Caixinha agora espanca a maca no chão. Escorrega uma bola do saco e se oferece inteira, quicando, a meia altura, na canhota do Maestro que solta a bicuda na gorduchinha. Estoura na porta de lata (BUM), repica no teto de gesso (TAU), na tampa do armário (TUM) e explode acordando os troféus (TCHÁÁ). Estraçalha a vitrine. Delírio! Delírio!

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