Acordão

Politico mentiroso

 

* “Para impedir que os filhos de gente pobre sejam um peso para os seus pais ou o País; e para torná-los úteis ao povo.”.

É um fato que sangra aos olhos, melancólica e triste cena que somos obrigados a presenciar quando se passeia por aí ou em viagens por grandes cidades do nosso País. São casebres, arremedos de casa, barracos atulhados de mendigos, colônia de usuários de drogas, improvisos de papelão sob viadutos. Mães empurrando carrinhos de supermercado, lotados de sacolas vazias, com suas quatro ou nove crianças esfarrapadas penduradas no colo, pelas pernas e calcanhares. Mães que, ao invés de trabalhar para a manutenção dos seus, são obrigadas passar o tempo todo a esmolar o sustento dos desamparados filhos, os quais, depois de crescerem, ou bem viram ladrões, por falta de trabalho, ou abandonam a toda sorte seus pais e sua gente.

Na certa concordam comigo os nobres senhores, que toda essa população de filhos de pobres que salpica nas encostas dos morros, perambulando nas rodoviárias, nas areias das nossas praias, toda essa miséria exposta assim, na atual situação deplorável que estamos atravessando, causa um dissabor enorme entre a sociedade de bem. Ademais, alguém que conseguisse encontrar uma solução barata, simples e lícita de transformar esses pobres diabos em membros úteis e sadios da nossa comunidade, bem que mereceria uma estátua erguida como salvador da pátria.

Tendo mergulhado em pensamentos profundos sobre tão importante questão durante muito tempo. Analisando as propostas e os conceitos de outros diversos pensadores. Considerando todas as metodologias utilizadas até aqui. Cheguei à conclusão que muitos, se não quase todos, equivocam-se grosseiramente em um mesmo ponto. A verdade é que uma criança, filho de pobre, pode ser sustentada durante as primeiras quatro estações somente com leite materno, mais um pingo de algum outro alimento que a mãe consiga com a sua função de pedinte. E é exatamente quando estão com um ano de idade que proponho cuidar dessas crianças de modo que, ao invés de ser um peso, e de necessitarem de comida e roupas para o resto da vida, possam elas contribuir para alimentar e vestir parcialmente milhares de pessoas.

Sendo assim, passo agora mesmo a propor minhas ideias que espero, sinceramente, não sejam passíveis de nenhuma objeção.

Um americano inteligentíssimo, amigo meu que participou de estudos em Londres e atualmente mora na Índia, me assegurou que uma criança saudável e bem cuidada é, com um ano de idade, o alimento mais nutritivo, saboroso e benéfico que existe. Seja assada, ensopada ou servida com arroz de forno. E não duvido que também se revele primorosa para um belo carreteiro no dia seguinte.

Proponho então para a consideração pública, com a finalidade de atender a demanda reprimida, que uma parte das crianças seja destinada a procriação, sendo respeitada a proporção de um macho para cada quatro fêmeas, o que já é mais do que permitimos para touros, carneiros e porcos. Para que as demais, com um ano de idade, possamos oferecer as pessoas bem intencionadas e de ótima fortuna por todo o País. Nunca se esquecendo de orientar as mães que deixem os bebês mamarem bastante no último mês, a fim de ficarem roliços e prestarem para uma boa mesa. Uma criança servirá bem quatro pratos para a recepção de convidados. Quando a família jantar sozinha, pode preparar apenas um dos quartos, traseiro ou dianteiro, bem temperado com pimenta e limão. Ou assar inteira, apoiada sobre os joelhos, com uma maçã entre os dentes, segundo costuma-se servir a lebre no velho mundo.

Calculei que um recém-mendigo, se bem alimentado no peito materno, possa dobrar de peso em um ano sem maiores investimentos. Ainda assim, confesso que será uma iguaria cara, perfeita para os grandes donos de terras e famílias mais abastadas que, afinal, já vem devorando seus pais e parecem plenamente fazer jus aos filhos.

Poderíamos estender uma campanha anual sinalizando a Época da Carne de Criança. Ao passo que a mãe fica apta ao trabalho até que possa produzir outro filho. Ainda aos que gostam de bem aproveitar tudo, como acredito que os tempos exigem, pode-se esfolar a carcaça, cuja pele, tratada adequadamente, se aplica com muita eficiência como protetor de tela para celulares e tecidos condutores bioeletrônicos, garantiu-me o amigo americano. É só acompanharmos os noticiários e veremos que não faltarão açougueiros. Se bem que se recomenda comprar as crianças vivas e prepará-las ainda quentes da degola, como fazemos com as galinhas caipiras.

Pessoa comprometido com o bem estar social, pela qual tenho enorme apreço, notável colaborador desse plano, sugere ainda o aprimoramento para uma segunda fase.  Sabendo da escassez da carne de rã, apreciadíssima pelos nobres e gentis homens desse plenário, sugere esse membro do meu alto escalão, substituir tal iguaria pelos corpos de rapazotes e moçoilas, com não mais de quatorze anos e não menos de doze, já que é tão grande o número dos que estão prestes a morrer de fome, por falta de trabalho de perspectiva e de ajuda.  Reconheço o esforço do honrado colega na tentativa de curar mais essa chaga. Porém, tenho que discordar do caríssimo cidadão, pois, no que tange aos nossos estudantes, formados na resiliência, sua carne é fibrosa, dura e magra.

Outros aliados, também com interesses em recuperar a ordem a os bons lucros que o nosso Senhor Mercado merece, manifestam grande preocupação com o vasto número de gente pobre que está velha, doente ou aleijada. Com isso, propuseram que concentrássemos pensamentos em medidas para aliviar a nação desse estorvo. Nenhum desconforto, entretanto, esse problema me traz. É sabido que dia a dia essa gente vem morrendo de frio ou de fome. Apodrecem sozinhos. Seja de praga, seja por imundice. Uma reforma previdenciária pontual deve acelerar o processo.

Não tenho dúvidas de que esse banquete também despertaria o interesse de outras freguesias. Quem sabe até um programa desses realities gourmet. Fora o incentivo ao casamento hétero e a salvação dos costumes e da família tradicional. Aposto que nossos homens, conscientes que são dos esforços pelo bem do todo, vislumbrando a possibilidade de lucro onde só existiria uma vida inteira de despesas, começariam a tratar suas mulheres grávidas com deveras atenção e carinho, a mesma que dispensam aos seus automóveis, não mais aos socos e pontapés, prática hoje empregada em nosso território a cada onze minutos. Já enxergo as próprias mães concorrendo entre si para ver quem leva ao mercado a criancinha mais gorda e apetitosa.

Por fim, declaro que meu interesse é tão somente o bem estar do nosso País. Desenvolvendo para tanto o comércio, visto que o dinheiro irá circular entre nós, posto que o produto seja totalmente de nossa própria criação e manufatura. Cuidar das crianças, socorrendo os pobres e dando um pouco de prazer aos ricos. Articular uma ação política. Um acordo. Um grande acordo nacional, com supremo com tudo. Aí sim, estancar-lhes-emos essa sangria.

*sátira/texto baseado (opa!) no conto “uma modesta proposta” de Jonathan Swift (1667 – 1745 – Irlanda).

gostou? compartilhe e curta!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima