A casa no papel

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Chega em casa, aos farrapos, após dois humilhantes lotados. Desce direto no mercado. Corre até a escolinha pra buscar o menino. Sobe três lances de escadas com o menino pela mão, mochila nas costas e a sacolada a cortar os dedos. Suando, larga as compras e vasculha na bolsa até encontrar a chave da porta. O cenário que se apresenta também remete às batalhas farroupilhas. A pia é uma catástrofe. Toalhas desfalecidas pelo chão ou penduradas no que conseguiram agarrar-se. No corredor, um pé de meia, furado no dedo maior, busca seu par junto aos destroços. Pinga o chuveiro, inconsolável, sobre o sabonete esfarelado no chão do banheiro. A sala é um campo minado. Pedaços de pizza entre o vão do sofá, xícaras com restinho de café preto, o ferro de passar roupa, ligado, beija o piso frio.

Tragédia. É o que melhor define o quarto do casal. As roupas de cama retorcidas, amontoadas embaixo da penteadeira, irreconhecíveis. Os travesseiros, infelizmente, não foram encontrados. O roupeiro parece ter sido alvo de uma granada. Criados mudos em estado de choque. Sapatos numa confusão sem pé nem cabeça. Debaixo da cama, um tufo de cabelo, enlaçado à poeira, baila indiferente ao caos. Difícil distinguir se são farelos de alimentos animados ou formigas que passeiam sobre a cabeceira. Aciona o interruptor de luz por impulso, a lâmpada não obedece já faz alguns dias. Cintos e lenços enrolados em uma touca sugerem uma bola de pano que o menino chuta e dispara, gritando: gooolll, goiáxoo!

Descalça os sapatos e os põe na sapateira. Despe-se e coloca a roupa suja no cesto. No caminho até a montanha de pratos, recolhe e destina cada objeto ao seu lugar. O menino chuta qualquer coisa e grita: goiáxoo! Indícios de comida estragada na geladeira. Resíduos de alimentos entopem o ralo. Há sinais de resistência das hortaliças, do último jantar, nas paredes. Tem molho de tomate até no teto. Resolve iniciar a operação pelo banho do pequeno. Protestos para não entrar no banho, a água morna, espumas e molhaçadas, protestos para não sair do banho, pijama, leitinho e cama. Agora sim, pode dedicar-se à reconstrução de um espaço habitável. Parte direto pra louça. A sala é uma meta de curto prazo. O quarto é o próximo alvo. Banheiros vão sofrer uma intervenção pesada, questão de tempo.

Vassoura pra que te queres. Começa a pensar na preparação do jantar. Separa as roupas sujas por cores. Coloca as roupas na máquina. Põe uma chaleira d´água a ferver enquanto guarda as compras. Aproveita que o menino dormiu cedo pra passar duas pilhas acumuladas. Troca a lâmpada queimada. Responde alguns e-mails do trabalho. Molha as plantas. Uma mensagem vibra no celular: amor, vou encontrar a Fê e a Lu pra um chopinho, chego mais tarde.

A casa caiu.

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