Madrugada alta. No despertador do celular, o remix do canto de um galo. Embora abstêmio convicto, acorda com a cara de uma ressaca de vinho, suave, barato e vencido. Nariz achatado, testa enrugada, enormes olhos esbugalhados. O espelho devolve, invertido, uma mistura do Qualhada com um Pug. A voz é o ronco de um fumante boêmio. Os cabelos, um ninho de pomba rola. Fios que não se entendem uns com os outros. Assim é toda manhã. Menos mal que, magicamente, melhora (muito) conforme o relógio caminha.
Deseja os bons dias à vizinha, que embarcou no elevador com o cachorrinho no colo. Latia enfurecido. “Calma que ele não morde”. Percebeu depois que ela reportava-se ao animal. Uma nuvem cor de chumbo faz sombra somente por onde ele anda. Às crianças também causa estranhamento aquela (des) forma humana tão… tão… peculiar, digamos assim. Correm para os braços dos pais. Apertam os olhos com as mãos, encolhem-se e choram baixinho. Alguns até molham as calças. Não que aos adultos, antes das doze horas, não cause estranheza esse… essa… Essa (des) figura. É que, nesse período, pra ele, o mundo tem a cara amarrada num bode. Tudo são trevas e silêncio mineral.
Crianças e cachorros não conseguem fingir indiferença ao enxergarem alguém, tipo, esquisito. O belo, ao contrário, encanta animais e bebês, velhinhas e moçoilas, rapazes e jovens senhores. Plantas, ventos e passarinhos. Em tudo a beleza é apreço e de tudo ela se favorece.
No caminho até o trabalho, a esvaziar calçadas pelas quais vai passando, queixo erguido, passos firmes, evita os aglomerados de gente. Lá se vão dez horas e ninguém arrisca contato visual. Embora os olhos já começassem a desinchar, ainda parecem dois caquis maduros. O penteado vai ganhando forma, graças à lei da gravidade. Não se percebe mais as olheiras. Fala ao telefone, agora, num timbre de veludo cotelê. Agenda os compromissos todos para depois do almoço. Antes disso, nenhuma visita ou reunião. Garante que, após as doze badaladas, sua sorte vira. A vida, então, lhe sorri banguela.
Bateu meio dia e a pessoa que fecha negócios e encanta clientes, distribuindo charme e empatia por trás de um sorriso de mármore e dois olhos de absinto, difere em tudo da aberração que habitava aquele corpo até poucas horas. É uma metamorfose diária. Convites e caronas surgem aos borbotões. O sol abre um sorriso largo. Olhares afetuosos dos pequeninos por onde passa. Na volta pra casa, todo cachorro lhe abana o rabo. Uma brisa morna acaricia seu rosto de esfinge. Ipês desabrocham numa primavera temporã. Os lábios assoviam confiança em notas de jazz.
No elevador, a vizinha deseja as boas noites, pergunta o andar onde mora e se é novo no prédio. Na saída, passa o telefone do cachorrinho, que a essa altura já está em seu colo, caso ele precise de alguma coisa, amanhã estará de folga. Talvez precise, mesmo, combinado. Mas só à tarde.