Luz de outono em Porto Alegre. Abro o tripé em terreno plano, bem posicionado. Câmera ajustada. Os primeiros clientes, um casal, nitidamente desacertado, fez questão de uma espontânea. A moça, feia de pai e mãe, sorria de um brinco ao outro, vestia um batom, matte, vermelho aberto. Uma cabeleira estilo Elba Ramalho. O homem, careca, baixinho, usava um terno dois números maior e um bigodinho de cafajeste. Os ombros arqueados, cabisbaixo, peito escavado. Fizeram o retrato e partiram. Mãos dadas. Ela cheirava o céu. Ele com a cabeça que era uma âncora arrastando na calçada.
Logo em seguida já me apareceu outro freguês, o dia hoje, parece, vai ser corrido. Um jovem senhor que, a julgar pela indumentária, servia às forças armadas, embora não carregasse uma arma consigo. Ao menos, não exposta. Retaco. Os coturnos muito bem lustrados. Seriíssimo. Não sorriu nem pra foto. Os olhos profundos. O cinto, bem afivelado, marcando a cintura. Posou em posição de sentido. Consultava um relógio de bolso de cinco em cinco minutos. Atendeu a uma ligação sem dizer palavra. Pagou e não quis o troco. Mancava da perna esquerda.
Eis que me surge uma figura que, julgando pela aparência, acabara de sair de algum cassino em Vegas. Um topete pra lá de Elvis. Blazer xadrez e calça de veludo. Uma gravata borboleta cor de vinho. Feliz da vida. Sorria de franzir a testa e cerrar os olhos. Fez questão de aparecer ao lado do seu violão. Tocou umas duas ou nove músicas em um idioma que não consegui decifrar. Ao final de cada canção, agradecia emocionado, um público que, na verdade, não estava nem ali. Devia ter uns três metros de altura. A voz grave. Movia-se em câmera lenta. Disse adeus e pediu bis, ele mesmo, para si próprio.
Duas amigas, duas irmãs, colegas de trabalho, namoradas, quem sabe, uma era ruiva, cabelos lisos até um pouco abaixo da cintura. Vestia um tubinho riscado e calçava um scarpin azul Royal, salto carretel. A outra, uma negra, retinta, genuína. Cabelo Black Power, descolorido. Cílios que não acabavam mais. Nasceu (só pode ter nascido) numa calça skinny no mesmo tom da bota over the knee. Entre um retrato e outro, riam e se mostravam os celulares. Fizeram. Refizeram. Tornaram a fazer e desfazer. Fizeram novamente. Até que gostaram. Acertaram em dinheiro vivo, cédulas novas, notas de cem.
Já quase recolhendo os equipamentos, levei até um susto, um tipo muito estranho, chapéu Panamá, orelhas de abano, um traje de linho e sapatos bicolor. Hablaba castellano. Dançava sozinho sem parar, mas queria, mesmo, era “bailar” comigo. Insistia em fazer as fotografias dançando, no escuro, de costas pra câmera. Falou sem ponto nem vírgula sem que eu entendesse uma palavra. Quis me pagar com cigarros. Depois quis me deixar o chapéu. Acabou que lhe presenteei com as imagens capturadas conforme o gosto do cliente: escuras, sem foco e nenhuma nitidez.
Corrido mas prazeroso. Intenso. Cansativo. Depois do bom jantar, preparei-me pra dormir o sono dos justos. Nem dez minutos. Uma algazarra, muita movimentação e ruídos de festa. Acendo o abajur e o que eu vejo é um furdunço instalado, sem cerimônia, na minha mesinha de cabeceira. Todos em miniatura: o Elvis da gravata borboleta tocava baladas, uma atrás da outra, e dançava daquele jeito que os Elvis dançam. A moça feia agarrada no militar, que não mancava mais, voava a cabeleira. Seu companheiro, enganchado na ruiva de tubinho riscado, já sem os sapatos, numa faceirice depravada. Enquanto o hermano do chapéu Panamá perdia-se debaixo dos caracóis da negra loira. Durma com um barulho desses!