desestar

Bem nesta mesma terça-feira de agosto, no horário em que eu costumo chegar em casa, não vou chegar em casa. Não busco as meninas na escola. Não passo no mercadinho nem falo sobre o colorado com o pessoal da portaria. Nossa cachorrinha também não me recebe com aquele rabo-hélice que parece que vai levantar voo a qualquer momento. Não pergunto como foi seu dia, nem beijo minha senhoura, como o faço, sempre que posso, apaixonada e demoradamente. Hoje, não estou nem aí. Na verdade, na verdade, estou onde as minhas crenças me alçaram.

Quando eu não chegar, não posso ver o quarto com a porta aberta e o estrago que a Maria Flor fez nos brinquedos. Não abro a caixa de correspondência e recebo contas, contas e mais contas. Não desço o lixo e não dou banho em ninguém. A louça, pode deixar que não é minha. Meu lugar no sofá, profundo, pesado, com a marca da minha ausência. Um prato a menos à mesa. A cama, aqui, estranha meu cheiro. Não são meus lençóis a quem confesso essas sinceridades. Em meu quarto, aquele onde hoje não estou, rogo que alguma das minhas benditas moças conforte o meu travesseiro.

Acabo de não estar e já não suporto mais essa não presença na minha rotina. O pior é saber que a rotina funciona perfeitamente sem a minha presença. Talvez até melhor. Sem mim, minha rotina fica muito mais leve. Espero que não percebam isso. Gosto de estar em casa. Ainda assim, não estar é muito, muito melhor do que estar sempre presente só de corpo. Ou, estar presente e sempre vidrado no ecrã. Ou, ainda, estar presente e invisível. Estar sempre presente, mas mal humorado. Pior, ser uma presença desagradável. Estar e não fazer falta alguma.

Hoje eu falto à apresentação do dia dos pais pela primeira vez em dezoito anos. Não reclamo do barulho durante o Jornal. Não sou eu quem faz a mamadeira. Hoje eu não interpreto nenhum dos Contos da Rua Brocá. Hoje, por mais que eu queira, não posso servir um tinto enquanto ela prepara o jantar. E quando for dormir, não repouso minhas coxas entre as suas coxas. Quem apaga a luz do corredor? E as portas, chaveadas? Hoje, eu queria, mesmo, levantar de madrugada e trancar a janela do banheiro, que é por onde o vento assovia os silêncios que atrapalham os sonhos dela – oxalá, comigo.

Ando com a ausência cravada no peito há dias. Troço que arde é saudade. Coisa de louco que eu acho é esse, assim, de repente, desestar.

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