São geladas as manhãs de inverno aqui no paralelo trinta. Especialmente na minha Poa, onde as primeiras melenas do sol custam a esquentar os ossos sob a pele que, por sua vez, está sob o pijama de mangas longas, que está sob a camiseta, na ordem, sob o blusão de lã, por debaixo do casaco. Depois, quando o sol já sacode a cabeleira dourada, tira-se, nesta ordem: o casaco, o pijama de mangas longas e o blusão de lã. Assim, quando a lua, carequinha, carequinha, aparece, e o sol deita o cabelo, faz-se todo o movimento inverso. Mas o que aquece, mesmo, nessas manhãs, é o cafezinho nosso de cada dia. Ah, que nunca nos falte o bom cafezinho!
O comércio ergue suas cortinas de ferro com aquele ruído que é o despertador dos mendigos sob as marquises. Alguns, levantam-se antes mesmo das lojas abrirem as portas, antecipando o movimento do pessoal da limpeza que já vem com balde e vassoura, luvas de borracha e botas, água sanitária e mangueira em punho. Recolhem seus papelões, cobertores velhos, suas garrafinhas de plástico com dois dedinhos de cachaça, seus cuscos, rengos de frio, e bocejam com gosto – os dentes podres escancarados – os olhos ainda semicerrados numa ressacavida que nunca passa. Eles não têm pijama, nem camiseta baixeira, blusão de lã ou casaco. Tivessem ao menos o bom café para amenizar as desgraças cotidianas…
Pois aí é que entra o personagem pivô dessa crônica. Um jovem senhor que atravessa a Rua da Praia inteira, de braçadas, equilibrando dois copos de café preto fumegantes, para entregar um deles em mãos, pontualmente, ainda quentinho, a uma senhora que desperta do sono profundo dos andarilhos sob a marquise já ensaboada. Aguarda o seu bom cafezinho com o sorriso banguela mais comovente do Centro Histórico. Cena que se repete. Espanta tanto pelo gesto, quanto pela sincronia. É uma se espreguiçar e esfregar os olhos de um lado, que o outro aparece esticando o copo de plástico saindo fumaça. Cumprimentam-se formalmente, desejam os bons dias um ao outro e seguem suas rotinas, agora, com certeza, mais confortáveis para ambos.
Acontece que ontem o jovem senhor não desembarcou na parada de ônibus que costuma descer diariamente. Também não comprou os dois cafezinhos fumegantes na lanchonete da galeria. Tampouco mergulhou afoito na Rua da Praia. Mas a senhora, que dormia sob a marquise e que talvez sonhasse com aquele jovem senhor, despertou para receber o seu bom cafezinho. Não me contive. “Moço um cortado, por favor, bem quentinho, copo duplo”. Aproximei-me, sem disfarçar o embaraço. “Toma, senhora, bom dia, acho que ele não vem hoje”. Ela bicou um golinho, fez careta, cuspiu fora, disse: “Tu não sabe que eu não bebo leite?”. Virou o copo inteiro na minha cabeça. Bom dia, metido.