Bom dia! Desejo que estejam bem e felizes.
Deixo vocês com os “Escritos de Marilena Chauí”
Bom proveito,
“A Servidão voluntária e os tiranos.”
“Sempre foi considerada uma expressão muito enigmática, a expressão ‘servidão voluntária’. Por quê? Porque a servidão é uma coisa pela qual você é submetido contra a sua vontade. Então, como é possível uma servidão voluntária? É esse enigma que um jovem francês do século XVI resolveu enfrentar. Ele se chama Étienne de La Boéccitie. Ele escreveu um texto, um panfleto, que ficou conhecido como “o discurso da servidão voluntária”. Bom, qual é a originalidade do La Boéccitie? Na tradição do pensamento político e da filosofia política o tratamento da tirania sempre foi uma coisa constante, todos os pensadores dedicaram se não um livro, um ensaio, um parágrafo para falar da tirania. E sempre focalizaram a tirania a partir da figura do tirano. Então, o tirano é descrito como um homem cheio de vícios, corrupto, mal, dominador, opressor, enfim, uma péssima pessoa. La Boéccitie mudou o foco da questão. Em vez de ir ao tirano, ele foi aos tiranizados. E ele perguntou, mas porque os tiranizados aceitam o tirano? E a resposta clássica que sempre se deu foi: bom, o tirano tem as fortalezas, tem as armas, tem os exércitos, tem o conjunto das leis e dos juízes na sua mão, ou seja, ele domina toda a sociedade e você não tem outro jeito se não, por medo, ou por complacência, se submeter a ele. E aí, o La Boéccitie diz: bom, se nós olharmos o tirano, nós vamos ver que ele é um homem como qualquer outro: dois olhos, dois ouvidos, uma boca, duas mãos, dois pés. Como explicar que ele tenha milhões de olhos nos vigiando? Que ele tenha milhões de orelhas nos espionando? Como explicar que ele tenha milhões de mãos que nos esganam? Milhões de pés que nos pisoteiam? De onde veio esse corpo fantástico do tirano? E ele diz: mas fomos nós que demos para ele. Nós demos pra ele os nossos olhos, os nossos ouvidos, as nossas mãos, as nossas bocas, os nossos pés, os nossos filhos, a nossa alma. Nós entregamos a nossa honra, pra que ele nos dominasse e fizesse de nós o que quisesse. É por isso que a nossa servidão é voluntária. Mas a questão é: por quê nós fazemos isso? E a resposta do La Boéccitie é terrível. Ele diz: porque nós todos somos tiranetes. Cada um de nós, no lugar em que está, quer submeter, dominar e controlar o que está abaixo. E, portanto, a sociedade inteira é tirânica. A tirania não é um acontecimento que depende do mau-caratismo do tirano. Ela depende de uma sociedade que está construída tiranicamente pelo desejo de dominar o outro. E, portanto, a servidão voluntária tem como causa nós mesmos. E diz o La Boéccitie: porque nós não desejamos a liberdade.”