Olhando assim, distanciado mais de trinta anos, a cena parece um filme em VHS. Verão alto e seco. Vila Elisabeth. Sarandirú profundo. Eu menino de pé no chão. Início dos anos mil novecentos e noventa (agora se escreve assim). A Praça Lampadosa ainda tinha a caixa d’água, vazia na ocasião, como vamos ver. Pouquíssimas pessoas – raras – sabem da passagem que vou narrar. Duas delas levaram consigo para sempre o futuro ex-segredo que agora torno público, ou seja, publico, aqui, no ciberespaço. Me julguem.
Tenho facilidade para lembrar datas. Nasci em ano redondo. Daí que fica simples associar a minha idade com as recordações que me atravessam. Não esqueço, por exemplo, que eu tinha dez quando o Dunga não fez uma falta no Maradona no meio do campo e permitiu que ele completasse o passe para o Caniggia e a Argentina eliminar o Brasil na Copa da Itália, adiando quatro anos o Tetra. Nesse episódio, garanto, não passava dos onze anos.
Uma casa. A casa abandonada. A velha casa abandonada de madeira, ruindo em silêncio, na esquina da Faria Lobato com a Vidal Barbosa. Cheirava a dejetos de gente, urina e toco de vela. As janelas soltas, tortas, escoradas em aberturas já tomadas pelos cupins. A porta descascada e semiaberta, de onde escapavam raios de um sol morno e pestilento. Por onde entravam, a noite, todo o tipo de bicho e de gente. Fugindo da chuva, na fissura da droga, pra fazer sexo ou se esconder da polícia.
O plano era exorcizarmos o terreno daquela assombração. Nosso projeto previa ali um campo de bolita, com gude profissional e tudo. Uma goleira para treinar cobranças falta e jogar três dentro, três fora. Pista de tampincross. Um banco e uma piscina de tanque. Noite calma, sem vento. O Cabeça foi na frente. A camiseta amarrada no rosto. Uma tocha de Fiat Lux bruxuleava o ambiente e o deixava ainda mais sinistro e insalubre. “Tá limpo! É…, tá podre, mas não tem ninguém”.
Derrama-se uma latinha de azeite cheia de combustível, sugado no fusca da minha avó. Acende-se um cigarro, roubado do pai, e deixa-se queimando, a bagana encostada na gasolina. (Vimos num filme VHS). Pronto. Cada um pras suas casas. Banho e cama. Não demorou muito a correria na rua. Um calorão fora do comum. A casa ardia numa imensa fogueira. Meus olhos entumescidos. A caixa d’água da praça seca. Os baldes e mangueiras comunitárias não deram conta. O caminhão dos bombeiros chegou quando as cinzas já se acomodavam em montinhos de fumaça.
Sim, vizinhos, fomos nós que incendiamos a velha casa abandonada na esquina da Faria Lobato com a Vida Barbosa, naquele verão abafado, no olho do Sarandi, começo da década de mil novecentos e noventa (é assim que se escreve agora). Não consegui mais sufocar o segredo. O rugido das chamas vivas, imensas, lambendo de laranja e amarelo as minhas memórias. Peço desculpas aos meus cúmplices (aos ainda vivos). Hoje, no local, funciona uma oficina mecânica. E agora, somente agora, mais de trinta anos depois, o fogo deixou de queimar em mim.