É notório que as coisas andam insatisfeitas, sobrecarregadas, custosas dos seus ofícios cotidianos. As coisas mesmo. Percebam. Talvez toda a nossa ladainha, as lamúrias desses tempos parcos e bicudos, insatisfações, nossos lamentos do dia a dia tenham se incorporado aos já cansados utensílios domésticos. Basta deixarmos os celulares a mais de um metro e meio (sem começar a se bater nos bolsos) e prestarmos atenção na paisagem sonora dos eletrodramáticos, fiascos hidráulicos e aberturas que nos cercam e nos servem.
Vejam. Poucos se atrevem a saborear as delícias das pequenas conquistas desanunciadas – claro que elas existem – estão aí, constrangidas de suas alegrias tão fora de contexto. Represadas. Até o dia que… Ah! Um dia desses…
Tenho um microondas que após perder o hífen se arrasta num ranger de correias que me parece uma tortura pra ele ser um microondas. Cada um tem seus limites. O dele foi o hífen. Não é que não funcione, funciona bem, cumpre o seu trabalho com perfeição. Mas quase chora. Triste e sofrido é aquecer um copo de leite, por exemplo. Pipocas estouram rapidíssimo, com pena da lamentação. Descongelar uma lasanha é um martírio. Esses dias o desligaram da tomada e ele deu um suspiro profundo e aliviado, depois apagou por duas semanas.
A geladeira da minha vizinha de porta grita. Ela avisou quando se mudaram, “olha, se tu ouvir tipo uns gritinho de noite é a nossa geladeira que faz isso de vez em quando”. Sei. Safadenha essa geladeira, ném… Mas a minha posso provar que odeia ser geladeira. Resmunga e se treme toda. Liga e desliga quando quer. Esvazia as próprias forminhas de gelo. Tenho certeza que ela abre a porta sozinha pra colocarem a culpa em mim – já vi. Dei-lhe um bico na carcaça. Agora, pela manhã, quando percebe que estou descalço, me dá choques. Fria e vingativa.
A torneira do tanque é outra que, se pudesse escolher, com certeza nascia sirene. É impressionante a vocação, a semelhança do som no veículo de socorro com o gemido alucinante e desesperador que ela propaga. Que reverbera na casa inteira pelo encanamento. E a palhaça da máquina de lavar se rebola toda, e faz batuque, e sai do lugar destemperada, bem louca. A chaleira chia, esbaforida, e ninguém esquenta.
Os trincos das portas, as dobradiças e maçanetas, todes unides, rangem e reclamam em uníssonos atritos, sem facilitar a menor abertura. Agora, se tem quem sabe aproveitar as mínimas vitórias ordinárias são as janelas. Silenciosas, sem percebermos, espreguiçam suas folhas. Arregalam as bocarras famintas de paisagem e convidam qualquer vento pra uma fofoca no beiral. Tem janela que emperra, trava o trilho, embaça o vidro, mas sempre cede na primeira chuva madrugadeira.
Parece que nos precisam lembrar de que tem vida boa à vista. Até o dia que… Ah! Um dia desses eu pulo a janela só pra ver que tanto se escancara pro nada e sorri faceira. Deve ser lindo!