Apito de afiador de facas

(des)encontro histórico

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Sabe seu Erico, no sábado passado, visitei a casa onde o senhor nasceu na cidade de Cruz Alta. Visitamos, é verdade, meus colegas e eu, em um seminário de educação, licenciaturas pra ser mais exato. Olho-me agora no espelho dos meus quase quarenta anos e peço a mim mesmo, como reverência, um belíssimo texto, “feito um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica”. Percebo que meus cabelos começam a seguir o mesmo destino dos seus. Daria um dia do meu futuro pela chance de uma conversa com o senhor. Quis o destino, esse cavalo aloprado, que não nos encontrássemos fisicamente nessa carreira. Mas como falaram comigo, diretamente comigo, aquelas palavras, tão precisas e honestas, tão exatas, que escreveu, bem sei, não pensando em mim, sinto-me à vontade nesses garranchos em lhe chamar de seu Erico. Tenho-lhe uma afeição genuína, lembranças do meu avô, seu Leonel, contador de histórias pra neto dormir. Seus Solos de Clarineta me chegaram pelas mãos de um tio muito especial, pessoa que fez toda a diferença nessa minha teimosia de viver da palavra escrita. Meu tio, Régis Waldemar de Lima Hasperoy Sobrinho – nome de biblioteca -, lia tudo que lhe caísse nas mãos; o que mais o desconsertasse, escorregava às minhas. Reparo agora que a nenhum dos três posso abraçar em agradecimento, carinho, despedida. Deixo aqui meu coração suspenso, feito o adeus do seu Sebastião ao menino Erico, na estação ferroviária, em ocasião de sua última partida. Devo muito, mas muito, muito, mesmo, aos senhores.
As fotos na sua casa, os objetos de trabalho, livros, pares de óculos antigos, a velha máquina de costura em que Dona Bega debruçava seus dias e noites. A farmácia, onde hoje funciona, veja só, uma farmácia. As praças, separadas quatro quadras uma da outra, a igreja, Terras e Cambarás, tudo respira Santa Fé. O sobrado do seu avô, seu Franklin, no entanto, sucumbiu à ganância. A mesma que pretende implodir também nossa educação. Humanista que era, vivendo esparsos intervalos democráticos, se fosse ao seminário conosco, ouvindo nossas realidades, pior, entendendo as realidades que se anunciam aposto que sentiria como um soco na boca do estômago. Foi o que sentimos. Para absorver o golpe, é preciso que se compreenda o golpe. De onde veio. Sua função e reais intenções. São imprescindíveis doses diárias de Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Uma imersão em Anysio Teixeira e Florestan Fernandes para entender que o contrário do ódio é educação. Nas palavras da incansável professora Jaqueline Noll, urge mudarmos completamente nossas escolas, cheias de formalismos e farsa, onde ingressam mil e saem trinta. Tardias, excludentes, discriminadoras, verticais e silenciadoras. Escola calada, País mudo.
É neste cenário, seu Erico, que me atrevo a fazer literatura, ou sei lá o que seja isto que faço, tentando imitá-los, ao senhor e ao seu filho, aquele “bicho de concha”. O que me sobra em cara de pau é o que careço em estilo. Assim mesmo, em nada intimidam as agruras que me espreitam, famintas. Sei dos perigos. Conheço o destino dos jovens escritores periféricos provincianos. Faço essas escolhas de queixo erguido, pisando firme, sapato sem sola e bolso furado. Nosso desencontro histórico, acredito, evitou meu constrangimento em pedir-lhe conselhos. Só isso me ampara sua nunca presença. Acertamos as contas, ao menos da minha parte, no diálogo entre Floriano e Rodrigo Cambará, em O Arquipélago. Melhor assim, que somente eu o ouça e que nunca me tenha lido. Preservo o que ainda me resta de dignidade. Ai, que não se pode mais confiar em espelhos. Pedi um texto belíssimo, um concerto de jazz, uma peça sinfônica, eis que me sai esta crônica tosca, um apito de afiador de facas. Perdoe, seu Erico, ele não sabe o que escreve.

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