LIÇÕES DE UMA ESCOLA SECRETA DE POESIA

Mariana Ianelli
Para Tiago Maria, pai de três maravilhosas meninas

 

Uma menina chamada Teresa, aos quatro anos de idade, teve um sonho. Ela se lembraria desse sonho muitos anos mais tarde. Que tinha saído para passear sozinha no jardim dos fundos de casa e, no caminho, viu dois diabinhos com olhos de fogo dançando sobre um barril. Dois diabinhos horríveis que, surpreendidos pela criança, correram a se esconder feito ratos.

Eu me lembrei desse sonho de Santa Teresinha quando vi minha filha sorrir diante de uma máscara monstruosa de Ravana, rei dos demônios no hinduísmo. Uma carantonha assustadora diante de minha filha e minha filha sorrindo. É assim, por circunstâncias dessas, inesperadas, que uma criança nos ensina o destemor espontâneo da infância, como a santa menina dentro de um sonho. É assim, também, que tenho aprendido a ver com os próprios olhos e a ouvir com os próprios ouvidos de onde vem isto que antes sabia apenas por empréstimo, pelos livros, da consanguinidade entre a infância e a poesia. Por exemplo, a alma menina de Mario Quintana. Os folguedos da língua em Manoel de Barros. Alberto Caeiro e seu menino Jesus fugido do céu.

Desde a chegada de minha filha, há pouco mais de quatro anos, que estou aprendendo, e essa é uma escola secreta, que convoca os olhos, os ouvidos, o olfato, a pele, a língua, tudo em nós a sentir e a pensar de outra maneira. O poeta guardador de rebanhos tem um menino que o conduz. Este é o segredo: deixar que a criança nos conduza. A partir dessa cumplicidade primeira, da poesia com a infância, escrevi o livro “Canções meninas”. Nessas canções, fala uma mãe que é aluna de sua filha. São vinte e quatro poemas escritos durante os dois primeiros anos de uma menina. A reincidência do outono, com suas goiabas gordas e tulipas-do-gabão cheias de chuva, nos poemas, desenha um tempo cíclico, mas o tempo que vigora nas canções é o instante, o eterno instante.

Já não passo pelo instante: agora me demoro nele. Vou aprendendo essa arte da demora, reaprendendo a duração da brincadeira, e a menina que me ensina nem sabe que está a me proporcionar a melhor das oficinas de poesia. A experiência poética, como a compreendia Octavio Paz, está colocada ao nosso alcance, e é para já, se abrimos para a criança espaço e tempo. As coisas se transmudam em outras, uma folha é uma flauta que é uma fruta, as palavras também se transmudam em outras antes inexistentes, maluca vira balula que vira cachuca, solstício de verão vira salpicho de verão, e assim o verbo delira, como desejava Manoel de Barros.

Sendo a criança igualmente mutante, sempre outra, instantânea, irrepetível, ela expõe o movediço da vida com uma transparência que não aceita disfarce. Isso nos exige uma dupla energia: de corpo e de espírito, para estarmos aí, com a criança, no movediço do instante, como parte dele. Esse estar aí, que é premissa da experiência, é também a nossa participação nessa escola em que todas as coisas se relacionam. A terra é mãe, a água é mãe, e a criança é toda ela um sim, mesmo aprendendo a dizer não, uma vida ao mesmo tempo frágil e destemida a que dei o nome de saxífraga, num poema.

Saxífraga é uma flor branca e miúda, que tem também um lugar especial na história de santa Teresinha quando menina. Uma vez a menina recebeu de seu pai uma flor dessas, retirada da terra com suas raízes intactas. Essa flor que, embora frágil, seria resistente ao replantio, traz em seu nome sua força. Saxífraga quer dizer “arrebenta-pedra”, o que é feliz metáfora para a infância. Uma miniatura de lírio capaz de rebentar pedras, como a flor do poema de Drummond, que fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. De fato, elas estão por aí, para o desconcerto da ordem, para o remodelar da língua, para o refazimento do mundo. As crianças. Saxífragas. Mestres das fantásticas analogias, das perguntas desdobráveis e espantosas, das palavras antes inexistentes, que passam a povoar a nossa língua com novos corpos de som e sentido.

“De onde as pessoas vêm?”, perguntou minha filha, uma madrugada dessas. Você pensa no macaco, no girino, nas estrelas, mas nada disso parece satisfazer a fome da pequena perguntadora. Assim ela vai me instruindo a não me contentar com meia dúzia de verdades mal requentadas.

No livro “Canções meninas”, os poemas aparecem intercalados com grafites de minha filha, que são como proto-desenhos, em redemoinhos e ondas, como rastros de instantes que “passariam rápido” – como costumam dizer sempre sobre o tempo da infância –, não voltassem, esses instantes, a acontecer no espaço-tempo do poema, infinitamente. O instante de um trovão e o rebentar de sons que vem com a chuva, o instante de uma menina correndo nua sob as nuvens, o instante de uma praça iluminada chamando os cães, as mães e as crianças. Cada um desses instantes está a acontecer infinitamente, não apenas no poema, também para cada criança recém-chegada a este mundo. A primeira lua que a criança vê; a primeira chuva; a primeira fruta.

Reuni essas canções como lições de uma escola secreta, da amizade entre o poeta e a criança. Há também ali uma mãe, mas uma mãe sem hierarquia, transmutável em água, em sombra, em gente anônima. Deixei-me guiar, na poesia, por uma menina, e o que aí foi se configurando me levou a uma experiência poeticamente inédita da alegria. Uma espécie de novo destemor no uso das palavras e de sua energia.

De repente me vem uma imagem, de uma peça de teatro, de quando eu era adolescente e um pequeno grupo do colégio se reuniu para encenar a Divina Comédia de Dante. Tínhamos 16, 17 anos. O garoto que fazia Virgílio, por causa de um distúrbio de crescimento, aparentava uma criança de nove anos estranhamente sábia. Dante, ao contrário, aparecia numa figura comprida, de homem feito, que de leve se curvava para tomar da mão de Virgílio na viagem ao inframundo.

Agora essa imagem, que pensava esquecida, de um Virgílio ao mesmo tempo infantil e estranhamente sábio, ganha enorme sentido. Incursionamos por outros mundos dentro deste mesmo mundo se nos toma a mão de uma criança e nos deixamos guiar por ela, se olhamos na direção que aponta o dedo desse menino que vive junto de Alberto Caeiro. Essa aprendizagem envolve a prática de uma poética, da literatura para a vida e vice-versa. No Canto VIII de “O Guardador de rebanhos”, o poeta escreve: “A Criança Nova que habita onde vivo / Dá-me uma mão a mim / E a outra a tudo que existe / E assim vamos os três pelo caminho que houver”. Tomei esses versos como epígrafe do meu livro “Canções meninas”. Uma via nova começa a partir dessas mãos dadas, desse caminho a três. Não é mais a via das coisas já muito vistas e sabidas. A via é outra, nós somos outros, as coisas também. E “tudo cabe sem absurdo neste mundo / Que começa agora: papel e tinta, lagartixa, tambor / Uma máscara africana, um espelho, uma cadeira / De balanço, uvas vermelhas, a lua cheia, / Tudo dança com a criança, tudo se irmana no poema”.

 

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3 comentários em “LIÇÕES DE UMA ESCOLA SECRETA DE POESIA”

  1. Gilmar de Azevedo

    Que lindo isso, Tiago. Este texto é de encher a alma. As referências aos grandes poetas e seus versos inspiradores, sua trajetória como pai, amigo, poeta, companheiro, amante e procurador do conhecimento e, o mais importante, descobridor das “maravilhosas descobertas das filhas”, o que o torna, já lhe disse isso, uma pessoa feliz na essência e no nascedouro. Parabéns, amigo, e avante com seus escritos de “encher a alma”.

  2. Gilmar de Azevedo

    E tudo pelas tintas da Mariana. Ah, felicidades assim, só mesmo os merecedores. Avante, Mariana Ianelli, para Tiago Maria, pai de três maravilhosas meninas. Vocês 5 são maravilhosos.

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