Em 2019, escrevi um texto para a revista RUBEM contando as intenções da Luiza, aquela filha do meio que eu mais amo, de ser “cirurgiona”, e sobre como ela já havia iniciado sua preparação fazendo intervenções cirúrgicas nas borrachas dos colegas. Casos como os do polímero ferido gravemente por um grafite zero sete que o atravessou de fora a fora, quando foi preciso utilizar uma pinça e um extrator de grampos para retirar-lhe o corpo estranho. E teve a situação, complicadíssima, das borrachas xifópagas azul/vermelha que foram separadas com primor numa operação que ocupou todo o horário do recreio.
Também o procedimento em um Babaloo de Morango com hemorragia interna, mas que não vem ao caso. O fato é que a Maria Amélia Mano, minha colega de Santa Sede, escritora talentosa, médica dedicada e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre – UFCSPA convidou-a, a “cirurgiona”, para ministrar uma palestra aos seus alunos, futuros médicos. A Luiza topou na hora. A palestra foi um sucesso, a plateia muito generosa, gostou muito, nos divertimos e aprendemos bastante uns com os outros, ela ganhou um estetoscópio e um jaleco personalizado. Inesquecível!
Agora a inquieta Maria Amélia fez o convite ao pai da “cirurgiona”, no caso, este cronistinha que voz escreve essas mal traçadas, para uma fala, na mesma instituição, também para os seus alunos, só que desta vez sobre adolescência. No primeiro momento, quis declinar por falta de competência no assunto. Depois, lembrei-me da coragem da Luiza, respirei fundo e aceitei o desafio, afinal, será a segunda geração da minha família a palestrar na faculdade de medicina, o que não é pouca coisa. Além disso, pensando melhor, tenho sim propriedade no assunto.
Ora, eu também já adolesci. Aliás, tornei-me pai ainda adolescente. Já fui pai de uma adolescente, a Júlia (22). Sou pai de uma adolescente hoje, da Luiza (13). E serei pai de outra adolescente em breve, a Maitê (7). Sim, tenho propriedade, talvez não tenha a mesma desenvoltura da Luiza, mas competência para tal, sim, tenho. Acontece que normalmente se fala no assunto a partir do adolescente. E o papel da mãe também é muito forte. O ponto de vista de um pai, mesmo o desse pobre paizinho aqui, acredito, será interessante. Tô pai, digo, Topei!
Bom, é preciso primeiro separar os conceitos de adolescência e juventude, confundidos com frequência. São coisas diferentes. O adolescer, não variou muito desde o meu tempo. É uma questão mais biopsicológica. Mudanças no corpo, necessidade de se autoafirmar entre os seus, liberdades e responsabilidades à flor da pele. A negação de tudo o que vem dos pais, o egocentrismo, os amigos idênticos, a sexualidade… São conflitos que, grosso modo, acompanham e inquietam a todos os adolescentes. Sejam eles, brancos ou negros, pobres ou ricos, com maior ou menor nível de escolaridade.
“A minha juventude, periférica, pai jovem, me foi tirada aos pontapés, as responsabilidades batendo e eu ali, apanhando”.
Já com as juventudes é diferente. Aí a coisa é mais sociocultural. São muito distintas as juventudes dependendo o lugar onde vivem. Não se compara a juventude do Três Figueiras e do Moinhos, por exemplo, com a do Sarandi e da Restinga. Ambas têm realidades, expectativas e universos riquíssimos, porém, bem distintos. São hábitos, jeito de vestir, músicas, bebidas e dialetos díspares. É mais extensa ou encurtada a juventude conforme a classe social. A minha juventude, periférica, pai jovem, me foi tirada aos pontapés, as responsabilidades batendo e eu ali, apanhando.
Recorro então ao Contardo Calligares, que em um de seus livros, faz uma analogia que me pareceu genial sobre o que ele trata de a “moratória” da adolescência. Moratória no sentido de adiamento sem data definida. O autor apresenta essa “nova-idade” como uma construção social relativamente moderna, coisa do início do século XX. E faz a construção que reproduzo abaixo, breve e nessas palavras toscas, como ilustração:
Imagine-se sobrevoando a selva amazônica e um acidente lhe coloca no coração de uma tribo indígena completamente desconhecida, porém, amistosa. Lá pelos doze anos de convivência, de trocas, descobertas e aprendizagens, você já discerniu quais são os valores daquela tribo, maneja com destreza a linguagem, conhece os códigos éticos e as leis que regem aquele espaço para a boa convivência.
Nesse ponto você já entende o que precisa fazer para ter o respeitado da tribo, sente-se preparado para competir na disputa pelo maior peixe, toca o “maracá” sagrado com igual perícia dos mestres, percebe as mudanças em seu corpo que é agora desejável como o dos seus pares. Nesse momento, nesse exato momento de pura potência, os caciques decidem que você deve aguardar mais uns, sei lá, dez anos, preparando-se, para depois participar de alguns rituais e frequentar alguns espaços reservados.
Nossos adolescentes percebem a incoerência quando queremos que eles sejam independentes e tenham maturidade ao mesmo tempo em que reprimimos sua liberdade. Eles, os adolescentes, já entenderam que em nossa sociedade é preciso ser “invejado e desejado”. Sentem-se prontos, querem competir em igualdade com os adultos, que, por sua vez, negam-lhes as chaves de acesso. Assim, sem saber quando serão aceitos entre os seus pares, os adolescentes seguem “produzindo, amando e ganhando marginalmente”.
Acho que vou por aí. Tomara que não me cancelem ou joguem tomates virtuais. Quiçá me aplaudam como aplaudiram a Luiza. Se vier um jaleco personalizado e um estetoscópio será a glória. E como citei a Glória, deixo aqui o convite: será dia 28/01 – 9h30min, tudo virtual, link aberto ao público, “a gente vai armar um circo / um drama com perigo / e nessa corda bamba, quem vai caminhar sou eu / e venha ver os deslizes que vou cometer / venha ver os amigos que eu vou perder”. É sem entrada. Vai ser na faixa. Apareçam!
Os estudantes de medicina não perdem por esperar!