Sístoles & Diástoles

         mala coracao
     A visão da janela até que não é  das piores. Acendeu um cigarro ainda na cama. Não fosse a cadeira, com a maldita rodinha que emperra nas subidas, iria até o passeio para descobrir, afinal, o que carrega na mala em formato de coração a moça que, diariamente, cruza seu campo de vista em direção à rodoviária.
    “De hoje não passa”. Está decidido. Precisava, de qualquer jeito, esclarecer aquela rotina que tanto a instigava. Talvez fosse só mais uma trabalhadora de outra cidadezinha que fazia seu trajeto diário da empresa pra casa, de cada pra empresa. Mas e a mala em forma de coração que ela maltrata pelas calçadas sem desviar de ninguém? Limpou o cinzeiro, que já estava abarrotado de baganas, e foi até o armário apanhar outra carteira.
    Seus cabelos negros e bem curtinhos, acima dos ombros, mostravam a nuca, onde pousava uma tatuagem impossível de identificar da janela.
    Bateu com o isqueiro, que andava falhando, na ponta da mesa, e acendeu outro cigarro. O coração a cabresto atravessava a passarela. A respiração viciada perdeu força antes da tragada profunda.
    Quisesse, mesmo, saber daquela estranha, teria que sair de casa, coisa que não acontecia há alguns anos, e abordar a moça. Perguntaria sobre o conteúdo da mala e desvendaria a tatuagem. Só isso. Ela decerto acharia esquisito. Mas quem se importa com as maluquices de um pobre aleijado? Acabou o cigarro. Um pretexto a mais.
    Diversas tentativas frustradas depois e  conseguiu colocar a velha cadeira de frente para o corredor. Até a porta de saída do prédio, são três lances de escada. Catou a maior bagana do lixo e acendeu com o último fósforo da caixinha. Tragou coragem de uma única puxada. Num esforço incomum, conseguiu vencer o primeiro lance. Suando muito, foi se batendo e desequilibrando até os últimos degraus.
    Empurra a porta, ofegante e já meio tonto. A claridade. Aquelas pessoas todas apressadas e o ruído da rua lhe causaram náusea. De uns tempos pra cá, era a coisa mais ousada que havia feito. Tinha um propósito. Não iria desistir. Sentiu falta de um cigarro para lhe devolver o ímpeto.
    A cadeira dava sinais de alerta. Nesse instante, teve a sensação de estar sendo observado. “É ela”. Quando foi se virar em direção à rodoviária, um coração, arrastado pela alça, palpitava nos paralelepípedos.
         Pediu um avulso na banca de revistas. Exausto. Os braços dormentes. A roda presa aumentava ainda mais o esforço. Quanto mais perto ia chegando, mais a boca secava. No peito, uma pressão. A camisa molhada. O braço esquerdo já não sentia. Alguns metros e acabaria aquela tortura. Só mais alguns metros. “A tatuagem!”. Era um coração invertido ou seus olhos embaçados o estavam traindo. Num derradeiro impulso, conseguiu tocá-la. A moça virou-se. Não tinha rosto. Apenas um buraco de carne. Caiu sobre a mala, que se abriu inteira derramando aos seus pés um coração quase parando, vivo, vermelho-sangue. Viscoso e quente. Com seus aurículos e ventrículos, suas veias, válvulas e artérias. Sístoles e diástoles.

*texto premiado no Desafio Literário, competição de escrita criativa organizada pelo Instituto Estadual do Livro (IEL) durante a 62ª Feira do Livro de Porto Alegre. Tema: superação. Gênero: conto.

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