solo fértil

semente

 

Foi numa dessas segundas-feiras que amanhecem te puxando pela mão, sabe? Acordei antes do relógio. O sol virou-se para o outro lado e se enrolou no cobertor mais cinco minutinhos. Aqui, da minha janela favorita, de onde a noite se estende até não caber mais, um vulto estranho e novo na paisagem acena inquieto no lusco fusco da aurora. O vento assovia gelado e faz parecer um daqueles bonecos do posto de gasolina, com diversos braços, suplicando atenção. Esfrego os olhos. Espicho a vista. Parece uma árvore. Sei bem que árvores assim, desse porte, não surgem de um dia pro outro em frente a nossa janela favorita. A cabeleira do sol começa a esticar suas douradas melenas clareando gradativamente a minha mirada. Agora consigo definir que se trata mesmo de uma árvore debochada, dançando toda oferecida bem onde os meus olhos se acostumaram espiar cedinho. Olhando bem, agora que o sol resolveu escovar os dentes a abrir um sorriso morno de bom dia, não tem verde esse arbusto intruso. A copa parece mais é uma colcha de retalhos coloridos. Quando balança, a impressão é de haverem pousado em seus galhos, se é que se pode chamar de galhos aqueles cachopos, centenas de aves estranhas. Mudas. Apenas equilibram-se, batem as asas e nunca alçam voo.  De vez em quando, despenca uma fruta madura ou podre. Sendo aquilo uma árvore, julgo que sejam frutas, maduras ou podres, que não resistem àquele bailado todo.

A maior parte dos passantes apressados simplesmente ignora aquele acidente natural que amanheceu bem no meio do passeio público. Um que outro se abaixa e recolhe um pomo da terra mesmo. Essa gente apressada consegue ser ainda mais esquisita quando não sabem que os estão observando. Os poucos que se dão conta da aberração ficam por um tempo analisando a estrutura da planta, se esticam na ponta dos pés para tocarem nas folhas. Outros se empolgam a subir um pouco mais alto no tronco. Um sujeito meteu-se a cavar na direção das raízes. Alguns pegam duas ou três porções pelo chão, colocam na bolsa e seguem de mãos dadas com suas urgências. Eu, sendo um homem de ação, picado pela curiosidade instantânea, resolvi ver de perto aquela inusitada surpresa que assaltou minha rotina. Quanto mais me aproximava sentia mais vivo um cheiro muito familiar e nostálgico que não consegui identificar num primeiro momento.  Parei alguns metros de distância. A máquina do sol funcionando a todo vapor sobre a minha cabeça, pensei estar alucinando. Esfreguei novamente os olhos. Respirei fundo e quase eu mesmo não acredito quando conto. Estava plantada, bem na minha frente, para o meu completo arrebatamento, a primeira árvore biblioteca que eu li na vida. Chorei como quem presencia um milagre. Choro até hoje contando. Juro! Uma árvore todinha de livros. Clássicos em flor. Enciclopédias aos cachos. Resenhas trepadeiras. Brotos verbetes, bem novinhos. Poemas maduros. Ramos de poesias em cores vivas, delicadas e vibrantes. Sentei a sombra de um tomo de capa dura até despedir-me do sol. Reverenciei as estrelas e adormeci por ali mesmo, ao farfalhar das páginas.

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