Memórias de um zagueiro de pelúcia

zagueiro-de-pelucia.jpg

 

Confesso que ela veio lenta igual volante trombador, mas chegou. É hora de pendurar minha parceira lilás com travas rosa. Repasso a braçadeira tigresa a quem honrar o posto de capitão. Mas tem que usar bigode! Já não acompanho as pernas rápidas, bronzeadas e musculosas dos atacantes mais jovens. Dos tempos de juvenil, junto a Dondon, lá no Andaraí, ficaram apenas lembranças. Pois justamente elas, minhas lembranças juvenis, motivaram este livro de memórias. Saio da defesa, pelo atalho como me ensinou a experiência, e vou ao ataque contra anos e anos de beques no armário. É preciso ser muito bem resolvido pra carregar o número quatro às costas sem descer do salto.

Recordo-me de um africano corpulento, de nome impronunciável, que formou dupla comigo no Flamengo de Riachinho. Dava carrinho até em gandula e errava mais passe que pai de santo novato. Na semana de jogo, não fazia a barba, não tomava banho e tirava os dentes da frente. A torcida o chamava de Hannibal. Meu estilo sempre foi mais clássico, elegante. Semidelicado, eu diria. Não menos competitivo. Algumas entradas mais duras fizeram parte do meu repertório, sempre visando à bola, é claro, mas um corpo a corpo, o “deixa que eu pego” e aquele agarra-agarra dentro na pequena área antes da cobrança de um escanteio nunca fizeram mal a ninguém. E eu também não sou de ferro, aqueles homens todos suados, sabem como é. Vou sentir falta disso. Até dos jogos. Da torcida. Dos massagistas. O vestiário. Ah, o vestiário!

Esse estigma de zagueiro machão, malvado e truculento é coisa da Idade Média. Quando, aliás, a palavra “saqa” entra em campo (de batalha), referindo-se à retaguarda de um exército. Os tempos mudaram. Nesses anos todos de carreira, não vi uma partida em que artilheiros e marcadores não trocassem receitas de creme hidratante, perfumes ou tendências para o cabelo. Tudo em surdina, fugindo da leitura labial. A realidade é outra. Muito mais leve e colorida. Menos preconceituosa e machista. Já existe até casamento de líbero passivo em esquema de três zagueiros. Tenho muito a contar. Vou defender essa bandeira com unhas postiças e dentes de porcelana. Só me falta um pseudônimo que diga por si só: chegueei! Penso em Borboleta da Meia-Lua. Ou Penélope Faltosa, o que acham?

 

Texto publicado no livro Cobras na cabeça – Crônicas (i)reverentes – Editora Buqui. Homenagem aos 40 anos dos personagens As Cobras de Luis Fernando Veríssimo.

gostou? compartilhe e curta!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima