Eu tenho uma amante, pronto, falei.

Virei a madrugada me refestelando ao sabor dos seus desejos e caprichos. Vi que flertava com um e com outro. Não me importo. Bem sei das suas incontáveis juras de amor eterno não correspondido. Enquanto isso, a noite debruçava-se, serena, sobre a cidade que dormia o bom sono da família tradicional. E nós, a provocar-nos numa confusão de sentidos, de cheiros e lembranças. Que noite! Fizemos quatro ou cinco vezes, não tenho certeza. Nos intervalos entre uma e outra, gracejos íntimos, comidinhas e bebidinhas, risadas e confissões. Coisas de amantes. Fez-me falta um cigarrinho depois, mas, hoje, anda tão cafona fumar que não fiz questão.

Confesso que, no início, estava bem nervoso. Sei lá, um pouco inseguro, com medo de decepcionar, de acabar cometendo alguma grosseria. Ela me conduziu pela mão com leveza e com toda a força da sua experiência. Soprava em falsetes, ao meu ouvido, palavras surradas que eu certamente já conhecia, porém, ditas assim, naquele clima, daquele jeito, com aquelas entonações, a mim, tocavam originais e sinceras. Será que ela fala também aos outros com estas intenções que me atormentam as ideias? Não quero saber.
Falamos de música. Contamos sobre viagens e reproduzimos diálogos engraçadíssimos. Deu tempo para uma espiada na lua que, distraída, fincou pé frente à janela até que a noite desbotasse em tons de ferrugem. Em certos períodos, o relógio enlouqueceu os ponteiros numa disparada lancinante. N’outros momentos, a máquina do tempo enguiçou, e o próprio tempo parou pra ouvir o que ela me contava com a verdade do mundo naqueles olhos verde Esperança. E pude ouvir minha própria voz reverberar nos seus lábios e derramar angústias numa tela fria, quando já íamos quase pelas seis da manhã.

Só aos amantes, os que amam, mesmo, sem condicionais, é possível dimensionar o tamanho do abismo em que nos jogamos cegos, sem redes de proteção, mentes e almas abertas para evitar a queda nos sedutores, macios e coloridos corais de clichês. Ah, os amantes! Sempre inconsequentes. Na busca de um prazer que é fugaz. Projetando no ponto final o gozo efêmero. E ela entregou-se a mim, na madrugada imensa, como quem perde a resistência. Eu, agora mais relaxado, lambuzei-me intenso e crônico.

Cheguei já com o dia posto. Minha senhoura dormia largo. Meu lado da cama com o lençol arrumado. Deitei-me sem dizer palavra. Um cansaço diferente, não era sono, uma sensação de atrevimento e dever cumprido. Alcoviteiros, alguns passarinhos faziam fofocas em nossa janela. Suspiro profundo. Os olhos cerrados e um sorriso carimbado na face. Em três ou quatro meses vem ao mundo o nosso rebento. Não vejo a hora de tê-lo nas mãos. Revira-se na cama: “Tu estavas com ela, né?”. Fingi que roncava.

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