Surdismundo

 

surdez

 

A gente ouve tanta bobagem no dia a dia que só vendo. Ou, melhor, só não escutando, mesmo. Porque não é possível desescutar, né? É igual a desver, não dá. Desler, não tem como. Tinham que criar um filtro que bloqueasse besteiras. Um aplicativo desses de baixar no celular que nos poupasse dos despautérios. Mas quem iria classificar o que é absurdo, o Moro? O Carluxo? Qual, entre os dois, sabe o que é despautério? Com um dispositivo desses você, provavelmente, não estaria lendo este texto.

Certo mesmo é o meu amigo, João Surdismundo, que desliga o aparelho auditivo e só escuta quando bem quer.  Fala sem parar e atravessa os assuntos conforme o seu interesse. O João plantou a maioria das árvores aqui do bairro. Dirige um fusquinha 1.500 sempre acima da velocidade permitida na via. No verão, passa o dia varrendo e acumulando galho. Depois, faz um amontoado bem no meio da praça e espera anoitecer. Então, acende um cigarrinho, dá dois peguinhas, deixa a bituca queimando, bem na mãnha, por de baixo do amontoado de folhas e galhos secos e sobe para o seu apartamento. Saboreia a fogueira e o alvoroço da janela. Só dorme quando os bombeiros vão embora.  Para ele, tudo em silêncio. Agora anda todo metido com um tal de órgão novo.

Meti o meu órgão na sala bem de frente pra porta que dá pro corredor é que a acústica favorece o som reverbera lá no primeiro andar já teve umas três reuniões no condomínio uma falação um bate-boca eu não ouvi nada é que eu não sei copiar nada dos outros daí vou inventando samba com jazz e xaxado com bolero mais valsa atolada e vanerão swingado e por aí vai mas às vezes nunca dá certo tem dias que eu pego no sono tocando gosto de ensaiar de madrugada sabe que é pra incomodar mais os vizinhos desligo o aparelho do ouvido e faço os meus concertos o problema é que me dá uma fome do cão e eu tenho uma panela que eu chamo de Titânium que cozinha até pedra ferro daí que faço umas mistureba com banha de porco e pimenta que nem o cachorro come no outro dia vezenquando eu vou lá na garagem e pego um latão de BudBund e vou só regando o figueredo porque o meu pai deu com uma pá de corte na cabeça de um soldado pra fugir da guerra por isso é que eu não vejo mais televisão desde de que o Flavio Cavalcanti morreu o negócio é ficar ciscando na terra igual galinha pra não enferrujar eu tinha uma amigo que era domador de cavalo e não conseguiu mais para de corcovear quando ficou mais velho o cara acostuma a fazer uma coisa a vida toda e depois não consegue largar é igual àquela vez que o meu cachorrinho caiu da janela encima da dona Iolanda…”.

– Tu te lembras, Maria? Quer uma BudBund?

– Não, não, valeu, João.

Tá, vou lá buscar duas pra nós então.

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