Redução de culpa

É verdade que ando sensível ultimamente, não posso negar. Isso que ainda nem estamos na época mais afeita aos sentimentalismos. Já, uma criança cantando Let it Go num bunker, um idoso que sangra desnorteado, ou a mãezinha que amamenta sobre escombros na Ucrânia me afetam. Dia desses chorei junto com a senhorinha que cata o lixo na minha rua, nos abraçamos e foi ela quem teve que me acalmar, “vai passá, meu filho, vai passá”.

Famílias dormindo nas praças em casebres improvisados de papelão e sacos plásticos também me comovem. Manhazinha bocejando outono e um mendigo enrodilhado na calçada sob a marquise me dói na boca do estômago. Uma criança pequena de mãos dadas com outra menor ainda vendendo panos de prato no cruzamento, os pezinhos descalços no asfalto úmido, invisíveis, não pra mim.

Até os vira-latas nas sarjetas com aqueles olhos pidões me tiram o centro, divido com eles, e com qualquer um que me encare faminto, o privilégio do meu sanduiche de mortadela. Não posso mais ouvir música instrumental que engasgo. Filme dramático, nem pensar. Transbordo. Uma ligação com despedida mais demorada e, pronto, tô eu aqui soluçando antes de desligar. Estranho que me oferta o bom dia é um gatilho para fremer meu lábio inferior.

“Todo o tipo de gente agarrando a esperança pelos cabelos. Quatros quadras e uma vaga”.

Fila pra vaga de emprego é outra coisa que mexe comigo. Todo o tipo de gente agarrando a esperança pelos cabelos. Quatros quadras e uma vaga. Livro no lixo é um tapa na minha cara. Cavalo, só osso, olhos estalados, o beiço que é pura espuma, puxando carroça de madeireira tensiona o meu pescoço. O Jorge do cobertor guardando gimba nos bolsos dá vontade de fumar uma carteira todinha acendendo um cigarro no outro.

Não sei por que essas coisas me atravessam tanto. São cenas bem comuns hoje em dia. Quase ninguém repara. O sofrimento alheio já não espanta. Nada é chocante o suficiente pra merecer um basta. Não há o que valha uma revolta. A solidariedade, que tem data certa, horário agendado e fotógrafo particular, aguarda o comércio liberar as compras. Mais um pouco e começam as campanhas de redução de culpa com transmissão online. Mas isso só lá pro final do ano.

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