Maltrapilho, um par de olheiras enormes e salientes, a barba de dias por fazer, botina furada no bico e solado aberto. Esfrega o chão com um pano encardido. Recolhe restos de bebida e limpa os cinzeiros como ninguém, daí o apelido: Cinderelo. Segue na lida pesada. Banheiros, quartos, cozinha, tudo impecável até as dezoito em ponto.
“Seis da tarde como era de se esperar”, no portão, surge o fado padrinho já embriagado. Uma Pampa com o IPVA vencido, a porta que não fecha direito. Sacode a bebida mágica e num instante se faz a limusine. Um chofer de luvas brancas. Dois seguranças. Agora sim, pronto para o baile, asseado, sapato bicolor, terno risca de giz, cabelinho na régua.
“Camarote real, por favor, e traz a bebida que pisca”. Hoje é heavy no castelo. Só convidado VIP. As três pistas lotadas, performance com engolidores de fogo e show de pole dance. De repente, o relógio do salão principal bate as doze badaladas. Desce as escadarias num pulo, perde um pé do sapato, o fado madrinho empurra a Pampa pra pegar no tranco, desaparece estrada a fora.
Seis da manhã. Os olhos profundos. Um balde de água suja e o velho pano encardido. Barba arranhando. Cinzeiros, banheiros, quarto e cozinha, nessa ordem. É dia de lavar os vidros. Um pé descalço, a meia com buraco no dedão. Cabeça que pesa uma tonelada. Só pelas dezoito. Batidas na porta. Vieram devolver a botina furada e recolher a Pampa.
Puxa, que situação do Cinderelo, mas real e em empos “bolsonasíocos”, mais do que antes. É como escreveu Lobato sobre o Jeca: “lindo no romance e feio na realidade”. Parabéns, Tiago. Avante!